Textos sobre RM
Debruçados sobre o surpreendente trabalho de Ricardo Maurício, o primeiro sentimento que nos invade é o da perplexidade. É um trabalho que nos exige muita paciência. Uma paciência chinesa que elabora a idéia do lixo como retrato da Sociedade.
Claro que a lembrança de Magritte e Duchamp vem imediatamente. Só que a eles associamos a imagem do “cult” asséptico, ocidental e branco. A lembrança de Farnese de Andrade também é automática. Mas o que era trágico, nostálgico, inspiração de vitrines de bric-a-brac repletas de bonecas mórbidas, agora está banhado por uma luz singular e translúcida. Esses ex-votos da indústria de plástico que Ricardo Maurício acondiciona em verdadeiros “containers” poéticos nos remetem às imagens finais do filme de Antonioni “Zabriskie Point” – premonitório alerta contra o consumismo em que mergulharia a sociedade moderna. Mas também o que era crítico no filme, no seu trabalho é uma leitura bem-humorada, ritualística, quase um despacho de macumba onde o “divino” se confunde magicamente com o deboche. Um deboche amenizado por uma estética personalíssima, um brinquedo arquitetado por uma memória que foge de remorsos. Empresta metáforas das histórias-em-quadrinhos e a boneca incinerada (que é um fetiche sado-masoquista em holocausto) transforma-se no momento seguinte num anjo torto, num avião em simultâneo vôo.
O luxo desse lixo – como prefeririam os neo-cocretistas – está nesse reflexo da sociedade pobre mas de ilimitada criatividade. As favelas cariocas estão repletas desse remanejamento criador. É o tapete trançado de fibras de sacos de leite, as rosas laminadas de sobras de papel de cigarros e etc.
O trabalho de RM, transgressor de um discurso político que em geral é sombrio, devolve essa alegria também remanejada – no seu mais amplo sentido – que é a mesma que desfila nos carros alegóricos empurrados pelas mãos criativas do povo. Recolhe as flores naives do botequim da Praça Mauá e atira-as, quase num jogo de dados, sobre os esqueletos de plástico de todas as infâncias perdidas. Esses ebós poéticos são riquíssimos, multicoloridos, radiografias dessa Cultura banhada de áfricas e cercada de índios por todos os lados. E minuciosamente montados, artesão que ele é, é um convite para jogarmos junto com ele essa lúcida elaboração de uma arte que, ao construir-se, revela-nos o prazer com que se constrói.
Luís Carlos Lacerda, 1992